Fazer Melhor

Sonhos e lamúrias:
posso fazer melhor que isto.

Posso retirar do passado atribulado da raça a culpa pela nossa desgraça.
Fingir que não vejo um homem atravessar a rua para degolar um bebê.

Posso passar as mãos sobre um automóvel parado na esquina e render-lhe graças, como a um Deus.
Endireitar meu cabelo, tirar um auto retrato e obrigar transeuntes a beijá-lo.
Quebrar a vidraça de uma casa e lá colocar uma galinha morta,
ou uma cabra.

Posso fazer melhor que isto.
Negar comida ao menino desnutrido, à espera no lado esquecido do planeta.
Mergulhar no rio morto até cair nos mares do Espírito Santo e da Bahia.
Continuar a sonhar com a vida solitária numa ilha paradisíaca.
Sentir-me merecedor de privilégios apenas por ser homem branco e pequeno burguês.
Negar que o presente está  desnorteantemente injusto.

Posso fazer melhor que isto.
Ainda que tardia, a tal liberdade:
atar-me às costas dos acontecimentos,
ajeitar meu cabelo, tirar outro auto retrato e guardá-lo para a minha lápide.

Voar, enquanto isto, pela internet enlodaçada,
ofender os já ofendidos,
endeusar uma trupe de cavaleiros apocalípticos
e dançar com eles pela madrugada.

Convercer-me de que vivo numa página de revista de modismos.
Rir da menina que pede socorro.
Destruir o sossego da vizinhança com minhas queixas sem razão.
Espalhar boataria infame em mais poemas enfadonhos, como este.
Posso fazer melhor que isto.

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