Não sei se esta pomba ainda está viva. Provavelmente, não. Uma semana é tempo demais para uma pomba tão doente.
Ela apareceu-me no alto do Parque Eduardo VII, no domingo passado, dia 31 de Março. Estava eu sentado num daqueles bancos curvados compridos de metal, logo abaixo do restaurante chique. De lá eu via o Tejo silencioso, depois da Baixa pombalina fervilhante aos pés da rotunda do Marquês de Pombal.
Quantas vezes esta pomba combalida pousou, ousada, sobre a cabeça de bronze da estátua do grande especulador imobiliário português, este homem que, no final do século 18, fez do descalabro causado por um terremoto terrível a oportunidade de se tornar imortal e infinitamente mais rico? Ou terá sido ela uma pomba subalterna num clã de pombas aguerridas, que não lhe deixavam subir mais alto do que a cabeça de Minerva, na base do monumento fálico, sempre a ensinar os lugares incontornáveis dos ricos e dos miseráveis?
Nada disso eu sei, porém o que me importava, naquele domingo, era a sensação de ter sido escolhido como o Caronte daquela pomba abnegada, diante do seu fim iminente. Eu, escolhido para lhe servir as últimas refeições, escutar a sua confissão final, benzer-lhe a testa diminuta após o último suspiro e, ao fim de tudo, levá-la ao canto do vale das almas onde outras pombas estariam à sua espera, talvez para lhe garantirem um lugarzinho mais digno pela eternidade a fora.
Olhamos-nos por alguns instantes, a transmitir um ao outro a certeza da impossibilidade. Eu não poderia continuar ali para ouvir o seu adeus derradeiro, muito menos para lhe garantir sequer a comida daquele dia, pois a minha avareza não me permitia lhe dar migalhas das nozes que trazia na mochila.
Ela, ciente de que nada poderia fazer para que eu a levasse, certificava-se mais uma vez de que, via de regra, homens como eu lhe reservavam, sempre, a empáfia, a raiva, o nojo e a indiferença.
Ela se afastou, buscou qualquer coisa junto a outro homem que nem se dispôs a notá-la. Depois de alguns instantes, veio novamente até mim, com novos e estéreis argumentos. Sumiu da minha vista, deixando-me com os meus teretetês existenciais, os meus medos e a minha própria insignificância, ante da vista insidiosa e, por isto mesmo, imponente do Marquês, o qual, por sua vez, contemplava, pelo seu olhar de bronze, a cidade que construiu sobre os cadáveres carcomidos de tantas pombas cansadas de sobrevoar a superfície da vida, sem nunca poder admirá-la das alturas.