Um antropólogo não tem sossego, minha gente. 24 horas por dia, 7 dias por semana, o antropólogo e a antropóloga estão em plena atividade laboral. É duríssimo!
Por isto, eu sei bem como é para um médico ter que acordar de madrugada para socorrer alguém. Contudo, no meu caso é pior, porque é pouco o que posso fazer quando buscam o meu auxílio. É que eu resolvi me dedicar a entender como o poder político é criado e se perpetua. Mas se engana quem pensa que eu só trate de candidatos e eleitores. Nada disto! Um dos pacientes mais frequentes no meu consultório antropológico é a Memória, ou melhor, é o passado que se faz presente na vida das pessoas.

Cada nome de rua, cada dito popular, cada linha de um livro didático têm significado para mim. A Memória está por todos os lados e, via de regra, ela está doente a pedir socorro. A minha vida é como a de um médico preso num hospital com trocentos mil cardiopatas em crise. É o horror!
Todavia, ao contrário do médico, o meu paciente sempre surge, no meio do nada, com uma fartura exposta. Eu, por minha vez, tenho sequer uma tala para tentar ajudá-lo nestas ocasiões algo trágicas. Então, resta-me permanecer ao seu lado, testemunhando a sua dor, e depois elaborar um texto – sim, meu querido e minha querida, um texto! – para dar algum sentido ao que vejo. É o epíteto da impotência. Veja o que me aconteceu no sábado passado, para ter uma ideia do que digo.
Estive em Viana do Castelo, no litoral norte de Portugal. No sábado, eu quis aproveitar a imensidão do Atlântico para pensar em travessias e em saudades; para sucumbir à tentação assustadora de me perder no lado misterioso da vida; para imaginar a viagem dos seres microscópicos nos organismos de baleias gigantes e concluir que a existência de todos nós dependerá eternamente do sacrifício desses seres mínimos e elementares…
Eu só queria descansar e fazer poesia, mas quem disse que eu tenho este direito?! Eu não poderia me dar o luxo de nadar calmamente até Salvador, na Bahia, sendo eu um antropólogo diante de uma estátua, em que se lê – com grifos meus:
“Diogo Álvares Correia – CARAMURU
Heróico navegante vianense, sobrevivente de naufrágio na Baía em 1509, que, ganhando a confiança das tribos índias do nordeste do Brasil foi fundamental na instalação das primeiras capitanias portuguesas. Da sua união com a bela índia PARAGUAÇU deixou numerosa prole, semente da sociedade multirracial que caracteriza a nação brasileira.”
A Câmara Municipal de Viana do Castelo instalou oficialmente o monumento e assinou a idílica mensagem em 31 de Dezembro de 2008. Ao lê-la, supomos que os vianenses de agora são levados a acreditar que, antes de a engravidar sabe-se lá quantas vezes, o tal Diogo pediu gentilmente a “bela índia” em casamento diante da sua família indígena, como manda a ladainha católica portuguesa.
É já no início da minha intervenção que surge uma pergunta antropológica de partida – que não é um remédio, diga-se: nas escolas, chegam a ensinar aos vianenses que o Diogo fora gentil também antes de engravidar as irmãs e as primas da Paraguaçu, as quais também foram engravidadas por outros companheiros seus e cujas filhas, sobrinhas, netas e bisnetas também engravidariam de outros e mais outros “heróicos navegantes”, no decorrer da história do que hoje se chama Brasil?
No meu difícil labor, meu caro, eu preciso ainda executar um outro procedimento delicado, sem anestesia: virar a memória combalida de costas e verificar se há vermes a carcomerem feridas escondidas. Neste caso, havia um meio mundo de bichos: no Brasil, muitos de nós têm aquela bisavó que foi “arrastada a laço para casar” com um homem branco citadino e fundar, com ele, uma maravilhosa descendência.
Cada família brasileira nordestina tem o seu próprio Caramuru. O mito da gentileza sexual perpetua-se, almoça e janta nas casas do Brasil e de Portugal. Em Viana, subsiste a glorificação deste gene que povoara úteros de “belas” nativas. No Brasil, ama-se e odeia-se a “numerosa prole” resultante dessas insidiosas conexões sociais. As duas faces da mesma memória são unidas pela violência implícita, quase uma gangrena maquiada pela condescendência cínica de autoridades e propagada em salas de aula e mesas de jantar, por séculos e séculos, amém.

Agora, sim, você compreende a minha terrível experiência de antropólogo. Consegue imaginar o que foi elaborar um diagnóstico desta natureza e não encontrar um emplastro, um elixir, ou uma droga, que ajudassem a aplacar o sofrimento deste ser translúcido e moribundo, que veio até mim de repente, em frente ao mar, em Viana do Castelo?
Assim como outros pacientes, este chegou iludido pela minha presença, crente de que eu poderia fazer por ele algo além de descrever a sua sina, explicá-la e sugerir com palavras – e não com antibióticos ou cirurgias – uma solução paliativa. Para os seus males não há cura possível em curto prazo e sem um enorme esforço coletivo.
Repare numa coisa: a memória torpe que habita a estátua do Diogo está erigida em cobre e a palavra, meu instrumento de trabalho, pobre coitada, é um bisturi feito de vento. Fique, meu caro e minha cara, com este exemplo cabal do por que a minha profissão constitui-se num verdadeiro suplício.
