Pequenas crônicas, muitas delas inconclusivas, criadas a partir da observação do cotidiano de Lisboa, em especial de suas estações de metrô. O projeto editorial compreende também fotografias sobre esta luminosa cidade.
A mulher sentada em frente a uma loja, coberta excessivamente com panos pretos carcomidos pela sujeira, tal qual a pele de seu rosto queimado pelo sol, conferia ansiosa os números do euromilhões. Não mais que de repente, seu semblante cerrou-se: olhou para o lado, amassou os papéis com os mal fadados números e, com uma raiva que me pareceu recorrente, jogou-os num enorme saco abarrotado … Continuar lendo Fidalga
Um homem costuma andar nu pelas ruas de Barcelona. Cozinheiro, caminha pela cidade logo de manhã e gosta de o fazer completamente nu. Se assim também cozinhava, não haveria proplemas com pelos: é tatuado e depilado. Ele tatuou uma espécie de sunga em suas nádegas e pelve, que deixa, porém, em pele, seu enorme falo que, apesar de, obviamente, flácido nas fotografias que vi, parece … Continuar lendo Falo
Mal as portas do vagão se abriram e a chinesinha passou por mim tal qual um foguete, nem deixou rastro. Curioso, decidi acompanhá-la para tentar descobrir o motivo de tanta pressa. Subiu as escadas com os sapatos a estalarem na pedra, num pletórico tac tac. O cabelo longo e preto amarrado, a pendular entre as paredes róseas da estação, o celular na mão direita, com um … Continuar lendo Pressa
Há pouco, uma mulher chorava copiosamente na vizinhança. Continuar lendo Choro
Um cão pequenez esperava à entrada do supermercado, preso a uma barra de ferro. Quando a sua dona, senhora com prováveis oitenta anos, ocupou um lugar na fila, ele se levantou sem festas. Quantas vezes aquela espera se repetiu em sua vida? Idoso como ela, à hora de mais uma espera, sequer abanou a cauda ao vê-la com um sabonete e duas frutas nas mãos. Todos pareciam … Continuar lendo Pequenez
Um jovem casal lésbico, formado por uma negra e uma branca, ambas bem portuguesas, beijava-se fervorosamente enquanto esperava o metrô, em Lisboa. Dos demais transeuntes, indiferença ou, como de mim, admiração. Não percebi reações de espanto ou desprezo.Um idoso prostrava-se ao seu lado, a esperar, absorto em suas próprias paixões. Mirava o outro lado da linha férrea como se cantarolasse. Se as olhou antes de … Continuar lendo Casal
A pomba com a asa quebrada, resfolegante no gramado à margem do caminho entre a cantina e a biblioteca, não terá encontrado quem lhe salvasse a vida, a tempo de livra-la da morte que se avizinhava. Continuar lendo Solidão
Uma mulher indiana, usando uma linda roupa tradicional verde esvoaçante, com brilhos, entrou resoluta, com três crianças alegres que pulavam e gritavam em torno dela, num templo das Testemunhas de Jeová. Não reparei se tinha o terceiro olho pintado na testa.Os meninos pararam a brincadeira, antes de a seguirem porta adentro. Continuar lendo Testemunha
Eu ia bem atrás dele ao sair do vagão, quando de repente senti o cheiro de lama seca a me invadir como num encantamento. Reparei naquele homem ruivo e elegante que, depois de me tomar para si com o seu suor amanhecido, parou despreocupado para ler uma qualquer notícia urgente, ancorado em suas pernas abertas, tendo os braços a segurar o jornal como se este … Continuar lendo Faro
No supermercado hoje à tarde, na sessão de azeites, mãe e filha estavam em dúvida sobre o que levar. Eu lhes disse, levarei pequena garrafa de um com 1% de acidez para cozinhar e grelhar e, para isto, bastarão dois filetes bem finos e quentes sobre o fundo da panela, nada mais. Elas sorriram e eu também. Mas, veja que pena: para as saladas, disse-lhes … Continuar lendo Atonia
RG:Murilo 